O programa Desejar – Movimento de Artes e Lugares Comuns, sob a direção artística de Hugo Cruz, emerge como um pilar de experimentação e participação em Braga, Capital Portuguesa da Cultura 2025. Nascido da ambição de Braga a Capital Europeia da Cultura 2027, o Desejar procura alargar o acesso à arte e à cultura, transformando cidadãos em cocriadores de realidades, como explica o investigador, criador de arte política e cidadania. Nas assembleias regulares do Desejar passaram mais de 160 pessoas e dessa colaboração criativa surgiram as 13 criações artísticas originais que vão ser exibidas.
Quando, como e porque surgiu a ideia do Desejar?
O Desejar surge na sequência do trabalho feito no âmbito da candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura 2027. Fui convidado como consultor do programa artístico para pensar alguns projetos, e um deles estava muito centrado num festival direcionado para as práticas artísticas em diálogo com a participação das cidadãs e dos cidadãos. Com Braga a assumir o título de Capital Portuguesa da Cultura em 2025, o Desejar tornou-se um projeto prioritário, muito alinhado com a premissa de participação que era transversal a todo o trabalho.
Porque é tão importante fazer este programa?
O porquê de fazermos este Desejar está ligado com a necessidade de criarmos espaços que alarguem a diversidade de pessoas que podem e devem ter a arte e a cultura na sua vida. Tentamos chamar pessoas para a criação artística não só enquanto público, mas também enquanto criadoras de outras realidades, para, em conjunto, pensarmos as nossas sociedades atuais, tão fragilizadas e com tantos desafios.
Como funcionam as assembleias do Desejar?
O Desejar é um lugar de experimentação artística e um espaço para experimentarmos outras formas de estarmos juntos e de conseguirmos pensar, organizar e tomar decisões partilhadas numa relação horizontal. As assembleias são a base de todo o trabalho e têm acontecido regularmente. Mais de 160 pessoas passaram por elas ao longo de mais de um ano, sendo que o núcleo duro é de cerca de 25. Debater, estar junto, construir em coletivo é extremamente difícil, e acho que o Desejar ultrapassou claramente as nossas expectativas iniciais.
Todas as 13 criações originais que vão ser mostradas de 10 a 14 de junho resultam desta assembleia?
Os temas, as abordagens artísticas, as comunidades convidadas e os artistas nasceram desta discussão e são, portanto, decisões coletivas.
Quando nos preocupámos com as pessoas ‘invisíveis’ que são essenciais para a cidade, convidámos os trabalhadores de manutenção e limpeza da cidade para fazerem um trabalho com a coreógrafa americana Alisson Orr e a Plataforma do Pandemónio.

Criação em rede
Como surgiu esta rede de intercâmbio com as 800 pessoas de Braga e 60 artistas e coletivos de seis países?
Os artistas e coletivos foram sendo selecionados de acordo com as temáticas e as abordagens que fomos discutindo na Assembleia, assim como o convite às pessoas de Braga. Por exemplo, sentimos que era importante um trabalho para jovens com rap e uma abordagem feminina, por isso convidámos a Mynda Guevara para trabalhar com um grupo de raparigas. Quando nos preocupámos com as pessoas “invisíveis” que são essenciais para a cidade, convidámos os trabalhadores de manutenção e limpeza da cidade para fazerem um trabalho com a coreógrafa americana Alisson Orr e a Plataforma do Pandemónio.
Cada projeto foi construído com uma orgânica fluida, em que uma coisa foi naturalmente levando à outra. Foi assim que chegámos a estas 800 pessoas e a estes cerca de 60 artistas e coletivos de seis países.
Que destaques escolhe do programa, de 10 a 14 de junho?
Desde logo o espetáculo de abertura, o “85.755t”, que junta os trabalhadores da empresa municipal Agere à artista americana Alisson Orr e à Plataforma do Pandemónio. Nesse primeiro dia, também o encontro da Mynda Guevara com jovens de Braga.
Sentimos que era importante um trabalho para jovens com rap e uma abordagem feminina, por isso convidámos a Mynda Guevara para trabalhar com um grupo de raparigas.

No campo das várias performance-percurso pela cidade, uma nota para o projeto “Percursos Afetivos” do artista brasileiro Cadu Cinelli com a estrutura local Braga Ciclável, em torno das questões da mobilidade e da relação que estabelecemos com a cidade a partir de andar de bicicleta. Ainda, o trabalho “Manifestações Poéticas” de Caterina Moroni, que põe 28 crianças a conduzir os adultos por Braga, dando-lhes a sua perspetiva. Para terminar, a performance “Este Rio”, um trabalho ao longo do rio Este.
Uma palavra ainda para a “Parada Desejar”, a acontecer no sábado, dia 14 de junho de manhã, um convite para celebrarmos os nossos desejos individuais e coletivos. E o fecho do Desejar, no sábado à noite, às 21h30 no Theatro Circo, a peça “Golpe de Asa”, um trabalho do coreógrafo Sílvio Vieira com a comunidade queer.
Na área do pensamento, destacar a presença de María Galindo a 12 de junho, ativista dedicada ao feminismo, e a abrir a 10 de junho Jazmín Beirak, diretora-geral dos Direitos Culturais de Espanha, que nos vem falar sobre a concretização destes direitos.
As criações têm algum fio condutor ou são exercícios livres?
O fio condutor destas criações está muito centrado neste ato de Desejar. Partimos da ideia da hiperestimulação do desejo que vivemos nas sociedades atuais, que gera uma certa apatia e a forma como isso afeta a conexão com os nossos próprios desejos. O ato de Desejar parece ter-se tornado numa coisa que surge sempre de fora de nós e não de dentro.
A Academia do Desejar é a antecâmara de uma revolução cultural?
A Academia do Desejar foi uma ação do projeto muito mais dirigida para os atores da área cultural, social, educativa e ambiental de Braga. O objetivo era fazer com que estes se conhecessem melhor, trocassem conhecimentos e interagissem com especialistas. Estes encontros pretenderam criar um lastro colaborativo, destacando a importância de trabalharmos juntos apesar de termos perspetivas e áreas de atuação diversas.
A academia aconteceu de forma paralela à assembleia, justamente para que aquilo que é mais institucional pudesse dialogar com o que é mais comunitário e participativo. Trata-se de uma proposta de cruzamento entre os modos de fazer comunitários, os modos de fazer da esfera da ação pública e privada.
No seu entender, o direito à cultura está acessível a todos neste momento?
Infelizmente, não, e está muito longe de estar. Nós precisamos claramente de assumir a cultura, justamente como está inscrito na nossa Constituição, como um direito de todas e todos os cidadãos. Temos feito um caminho relevante do ponto de vista do acesso à oferta cultural, mas precisamos de avançar também para uma lógica em que as cidadãs e os cidadãos podem aceder aos modos de produção e serem eles próprios criadores e atores no que é a produção cultural e artística.
Temos, de facto, de ir mais longe do ponto de vista da acessibilidade à cultura e à arte. E isso passa por olharmos para os espaços da comunidade como espaços que podem e têm a potência de ser culturais.
A cultura pode ser mais viva e participada em cidades como Braga do que em Lisboa ou Porto?
Hoje, Braga alargou o eixo Porto-Lisboa, no qual estava muito concentrado o circuito legitimado da cultura do país. Braga não enfrenta as dificuldades que a maior parte das cidades do interior do país enfrentam porque tem sabido entender as suas forças endógenas e dialogar esses recursos com aquilo que acontece no resto do país, na Europa e no mundo. Acho que acima de tudo a participação depende muito de como o convite é feito às pessoas. As pessoas estão em geral cansadas de participarem em processos em que sentem que são instrumentalizadas, em que não interferem na decisão. Há um cansaço que se traduz em “para que participo se fica tudo igual”. Esta sensação tem de ser contrariada por experiências de participação satisfatórias e que devem acontecer na nossa vida o mais cedo possível.