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Trajetos Comunicantes: a viagem sonora que transforma autocarros em palcos culturais

Trajetos Comunicantes: a viagem sonora que transforma autocarros em palcos culturais

Publicado em 14 de Setembro de 2025 às 08:00

Os passageiros dos Transportes Urbanos de Braga têm ao dispor uma experiência singular: dentro de dois autocarros da cidade, ouvem composições sonoras que tanto os podem projetar para a selva brasileira como para um comboio na Indonésia. O projeto Trajetos Comunicantes, coordenado por Luís Pinto no âmbito de Braga’25 – Capital Portuguesa da Cultura, lançou estas viagens sonoras

Entrar num autocarro em Braga, esperar a paragem seguinte e, de repente, dar por si a ouvir “sons da selva”, uma vinheta radiofónica ou um registo feito por crianças do ensino primário: é esta a proposta do projeto Trajetos Comunicantes, uma iniciativa que transforma o quotidiano dos transportes públicos em palco artístico. Para Luís Pinto, coordenador do projeto, trata-se de “mostrar como a escuta pode ser um meio de perceber o que nos rodeia, de uma forma atenta e reflexiva”.

Queríamos que as pessoas não tivessem de usar um aparelho individual. O autocarro tornou-se espaço de escuta comunitária.

A ideia nasceu em 2021, quando o grupo de investigação AUDIRE, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade da Universidade do Minho, apresentou uma proposta de rádio comunitária. Do diálogo com a equipa da candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura em 2027, surgiu o desafio: usar os autocarros da rede TUB como espaço de experimentação. “Assim nasceu o Trajetos Comunicantes, pensado para questionar as formas como ocupamos os territórios, como nos deslocamos e como ouvimos as cidades”, como destaca Luís Pinto.

Trajetos Comunicantes: a viagem sonora que transforma autocarros em palcos culturais

A instalação nos autocarros deixa de circular em 28 de setembro mas o projeto só terminará em novembro, com a publicação de um livro de ensaios que reunirá reflexões sobre som, território e mobilidade.

Nove horas de conteúdo e 130 peças sonoras

Dois autocarros da frota bracarense foram equipados com altifalantes que transmitem, em ciclo contínuo, mais de nove horas de conteúdos – cerca de 130 peças sonoras. Há música, mais convencional ou experimental, paisagens sonoras, documentários, arte radiofónica e criações concebidas especialmente para este contexto. A lógica foi clara: criar uma experiência partilhada, sem depender de auscultadores ou dispositivos pessoais. “Queríamos que as pessoas não tivessem de usar um aparelho individual, porque isso deixaria de fora quem não está tão familiarizado com a tecnologia. O autocarro tornou-se espaço de escuta comunitária”, explica Luís Pinto.

Entre os autores estão artistas de várias geografias e também criadores ligados à cidade e à academia. Os Guache, dupla brasileira radicada em Braga, foram convidados a produzir uma peça que mistura observação e imaginação e que, em julho, ganhou vida também em concerto ao vivo. A associação Binaural Nodar, referência no trabalho com património sonoro, dinamizou oficinas de mediação a partir de locais específicos. Já o coletivo Mobile Radio criou pequenas vinhetas, “Sabedoria de Autocarro”, a partir de conselhos recolhidos junto de passageiros mais idosos – peças que, em maio, chegaram também à Antena 2.

O mais interessante é podermos estar num autocarro em Braga mas “transportarmo-nos” para um bairro no Luxemburgo, um ferry boat em Inglaterra, um comboio na Indonésia, estar nas ruas de Hong Kong ou Almati, no Cazaquistão, ou no metro de Thessaloniki, uma floresta na Bielorússia ou no Brasil, e mesmo ouvir Braga como nunca tínhamos feito.

Mas se a programação é variada e internacional, também há espaço para envolver a comunidade local. Estudantes de Jornalismo, Media Arts e Meios Sonoros participaram com propostas experimentais ou de caráter documental. Em abril, uma oficina dinamizada em Merelim São Paio levou crianças do 1.º ciclo a gravar sons do quotidiano, entrevistas a familiares e até brincadeiras, que depois integraram a instalação sonora. O resultado, garante o coordenador do projeto, foi “um contacto surpreendente com o ambiente sonoro que as rodeia e em que muitas vezes não reparavam”.

Trajetos Comunicantes: a viagem sonora que transforma autocarros em palcos culturais

@ foto Adriano Ferreira Borges Braga 25

Numa lógica de “rádio a bordo”

As reações dos passageiros têm oscilado entre a surpresa e a curiosidade. Há quem se abstraia, imerso na viagem, e quem se concentre nos sons emitidos. Alguns relatos dão conta de grupos fascinados com determinados registos, como os tais “sons da selva”. Outros passageiros, mais regulares, já terão ouvido praticamente todo o ciclo. Para Luís Pinto, essa diversidade é natural: “As pessoas estão habituadas ao silêncio ou ao ruído da viagem, mas aqui a paisagem sonora é outra, convida à atenção e à imaginação.” Mais do que um projeto artístico, Trajetos Comunicantes cumpre também uma função social e comunitária. A lógica da “rádio a bordo” aproxima-se de um meio de comunicação alternativo, centrado nas pessoas e nas suas questões quotidianas. Em maio, a Rádio Universitária do Minho transmitiu, em direto de dentro de um autocarro, uma emissão especial com responsáveis municipais, técnicos de mobilidade e os próprios passageiros. O alinhamento das peças, sem locução em tempo real, evoca a dinâmica de uma rádio comunitária, mas com um alcance internacional graças à plataforma online na qual todos os conteúdos ficam disponíveis.

De Braga para Hong Kong ou Brasil

Para Luís Pinto, usar o transporte público como palco faz todo o sentido: é um espaço em movimento, que cruza quotidianos, territórios e comunidades. A instalação permite uma experiência singular: estar em Braga, mas ser transportado por sons vindos de Hong Kong, do Cazaquistão ou de uma floresta no Brasil. É, como define, um “site-specific em movimento”, que vai mudando de cenário consoante o trajeto do veículo e a perceção do passageiro. “E o mais interessante é podermos estar num autocarro em Braga, mas ‘transportarmo-nos’ para um bairro no Luxemburgo, um ferry boat em Inglaterra, um comboio na Indonésia, estar nas ruas de Hong Kong ou Almati, no Cazaquistão, ou no metro de Thessaloniki, uma floresta na Bielorrússia ou no Brasil, e mesmo ouvir Braga como nunca tínhamos feito.”

Trajetos Comunicantes: a viagem sonora que transforma autocarros em palcos culturais

Trajetos Comunicantes

O projeto integra a programação oficial da Capital Portuguesa da Cultura 2025, introduzindo uma linguagem menos habitual: a da escuta como ferramenta de reflexão. Numa sociedade marcada pela velocidade da imagem, Trajetos Comunicantes propõe abrandar e recentrar a atenção no que não se vê, mas se ouve. O envolvimento da academia, de artistas internacionais, de associações culturais e da empresa municipal de transportes revela a capacidade do projeto em gerar colaborações e em testar metodologias que podem inspirar futuros trabalhos.

A fase atual terminará em novembro com a publicação de um livro de ensaios. A edição reunirá reflexões sobre o universo sonoro, a mobilidade urbana e rural, a vivência em transportes públicos e as próprias peças artísticas criadas para a instalação. Para já, não estão previstos novos desdobramentos imediatos, mas a experiência poderá ser replicada noutras cidades. “A oportunidade que nos é dada, num contexto como este, serve para experimentar, desenvolver metodologias e capacitar pessoas para futuros projetos”, sublinha o coordenador do projeto.

Assim, até ao fim de setembro quem entrar nos autocarros sonoros de Braga continuará a encontrar uma viagem diferente – não apenas até ao destino escolhido, mas também a uma paisagem sonora global, feita de memórias, invenções e olhares sobre o mundo.