A capital portuguesa da cultura colocou no mapa um roteiro das mais ancestrais tradições do Minho, da gastronomia à música, à partilha de histórias e saberes. O curador da programação do Clube Raiz, Ilídio Marques, faz um balanço de um projeto que vai deixar raizes profundas em Braga e no país.
Como nasceu o Clube Raiz e qual a ligação à Braga 25?
O Clube Raiz surgiu durante a candidatura de Braga a Capital Europeia da Cultura, com o objetivo de dinamizar e preservar a música de raiz, à escala regional e nacional, fortalecendo os laços de um movimento musical e cultural já existente, mas expondo-o ao estímulo da dimensão de uma Capital Europeia da Cultura. Originalmente idealizado por Ricardo Baptista, o projeto foi adaptado por mim para a Braga 25, mantendo o foco na música de raiz de Braga e celebrando o património musical do Minho.

Ilídio Marques @Lais Pereira
O ciclo Roda da Tradição, promovido pelo Clube Raiz, teve o seu terceiro momento a 20 de setembro, com a participação do chef e músico Rui Lemos Souza. Que balanço faz deste ciclo?
Após três encontros e restando apenas um para terminar este ciclo, o balanço é extremamente positivo e creio que não existiria outra forma de o avaliar. Quem participa deixa algo do seu saber e leva consigo o saber de outro. Exploramos o sentido de comunidade no seu todo, aguçamos a capacidade e o interesse em ouvir, refletir, aprender e partilhar. Toda a gente sai destes encontros com um sorriso na cara e a pedir por mais. Estes encontros geram memórias felizes e deixam sementes para que continuem em freguesias e comissões de festas.
O Clube Raíz é uma gota num oceano de música de raíz, mas ajuda a semear e regar algo que é orgânico e precisa de cuidado coletivo.
Como surgiu a ideia de combinar música, gastronomia e conversa?
A Roda da Tradição parte da partilha à mesa: não se partilham só alimentos, mas memórias e costumes. E foi isso que fizemos: sentamos as pessoas ao redor de uma grande mesa e tudo ali acontece — conversa-se abertamente sobre música tradicional com quem sabe, partilha-se (gratuitamente) comida originária ou inspirada na gastronomia minhota, confecionada pelo chef Rui Lemos Souza juntamente com um grupo de pessoas da comunidade que visitamos e de pessoas externas que se juntam; e tudo isto culmina ao final da tarde com um grupo de música tradicional de Braga, a tocar e a cantar sentados à volta da mesa, entre a comunidade residente e os visitantes. É um cruzamento de gerações e uma partilha intensa e atenta que acontece ali.

Na Roda da Tradição partilha-se a comida, a memória, os costumes e a música @Lais Pereira
Que critérios orientam a escolha dos músicos e repertórios?
Os repertórios são naturalmente livres, pois sabemos que estes grupos se focam na recolha e preservação do cancioneiro de raiz. São grupos que existem há dezenas de anos e que se dedicam afincadamente a este repertório de raiz, participando em vários momentos culturais da cidade e das freguesias do concelho. A única diferença face a estas apresentações que se tornaram o seu percurso é que os voltamos a pôr tal como um dia foram: sem amplificação, sem palco e sem aquela imposição de quem está a dar um concerto. Na Roda da Tradição, cantam e tocam sentados à mesa, o grupo difunde-se entre as outras pessoas sentadas. Levanta-se um coro comunitário orgânico, desafiam-se canções esquecidas pelo tempo, relembram-se outras.
O Clube Raiz tentou ligar tradição e contemporaneidade?
Ao longo deste ano, encomendámos um conjunto de quatro espetáculos maiores em que procuramos exatamente estimular essa relação, não no sentido de uma transmutação e de uma fusão, mas do realce e valorização de cada parte. Interessa-nos também o cruzamento de gerações para além do sonoro. Foi isso que fizemos, por exemplo, no espetáculo de abertura do programa Clube Raiz, que paralelamente integrou a abertura oficial da Capital. Pusemos o Grupo de Cantares Mulheres do Minho, um grupo feminino dedicado ao canto polifónico e que muito tem feito pela recolha e preservação do cancioneiro minhoto. Trabalharam na criação de um espetáculo juntamente com os alunos do Conservatório de Música Calouste Gulbenkian, que fizeram música especificamente para o repertório que elas cantam. Também cruzámos já dois novos valores da música portuguesa, a Ana Lua Caiano e Bandua, que se inspiram na música tradicional para criar nova música com carácter pop e contemporâneo, num espetáculo único e, mais recentemente, cruzámos a Orquestra de Dispositivos Eletrónicos, um projeto comunitário da Braga Media Arts que constrói uma orquestra informal de músicos e não músicos a partir de instrumentos eletrónicos, com o grupo Outra Voz, resultante da Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, que é um coro de voz comunitário formado por meia centena de pessoas. Fecharemos o ano com um espetáculo único, o Seara – A Música Portuguesa em Evolução, no Theatro Circo, que reunirá em palco Júlio Pereira, Amélia Muge, Rão Kyao, Manuel de Oliveira e Daniel Pereira Cristo. Será um encontro de diferentes gerações da música tradicional portuguesa das últimas décadas, que muito deram e estão a dar à nossa música.
Na Roda da Tradição, todos partilham saberes, memórias e canções – sai-se com sorrisos e vontade de mais.
Que outros eventos do Clube Raiz estão previstos para 2025?
Este ano, além da última Roda da Tradição, em novembro, e do espetáculo Seara, em dezembro, teremos ainda duas oficinas de aprendizagem, uma dedicada ao canto polifónico, ministrada pelo Grupo de Cantares Mulheres do Minho, e uma outra dedicada à braguesa pelo músico Luís Capela. Este são os dois últimos de uma série que também contemplou a percussão tradicional e o cavaquinho.
Este trabalho pode influenciar novas gerações?
Sim. Jovens artistas como Ana Lua Caiano, Bandua, Criatura, entre muitos outros, estão a cruzar a música de raiz com novas linguagens, participando em festivais e projetos contemporâneos. Ainda há desafios, como a falta de certificação de instrumentos tradicionais e de formação especializada destes instrumentos pelas instituições de ensino. O Clube Raiz é, diria, apenas uma gota neste oceano, mas veio para ajudar a semear e regar algo que é extremamente orgânico, mas que precisará sempre que alguém lavre. Um dos objetivos da nossa missão era também dar formação e possibilitar um primeiro contacto com os instrumentos tradicionais. Criámos então um conjunto de workshops, totalmente gratuitos, com formadores especializados e reconhecidos pelo seu trabalho no campo da música de raiz. Para trás ficou um conjunto de espetáculos, workshops, duas grandes arruadas de percussão tradicional, que juntou todos os grupos do concelho numa performance única, as rodas da tradição e ainda uma revista colecionável, de nome Raiz, que ainda terá um número de encerramento no início do próximo ano.
Qual a resposta do público?
Muito positiva. Workshops e espetáculos têm enchentes, com público local e de outros concelhos. Há grande interesse em mergulhar na cultura minhota, celebrando música de raiz apesar das dificuldades históricas.
Qual é a visão para o futuro do Clube Raiz?
Gostaria muito que o Clube Raiz tivesse continuidade no pós-Braga 25. É um projeto com imenso potencial, comprovado, ainda para mais numa altura que parece existir um êxodo migratório inverso ao que assistimos até hoje. Há uma geração que quer largar a cidade e viver num meio rural, com o saber do mundo moderno, mas que tem presente essa consciência da importância de preservação do mundo rural e de tudo o que ele possui. As Rodas da Tradição podem ser dinamizadas por comissões de festas, os espetáculos circularem pelo país, e as arruadas seguirem o seu percurso noutros eventos da cidade. Acreditamos que deixamos um maior carinho e atenção pela música de raiz, gerando atenção das instituições, oportunidades artísticas e exponenciando aquele que era o nosso maior objetivo: a partilha e a formação de comunidade através da música tradicional.