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Alterações Climáticas: em que medida afetam a nossa saúde?

Alterações Climáticas: em que medida afetam a nossa saúde?

Os fenómenos meteorológicos extremos, como ondas de calor e frio, precipitações torrenciais, inundações, secas, tornados, incêndios florestais, entre outros, tendem a tornar-se cada vez mais frequentes como resultado do avançar das alterações climáticas. Este cenário já impõe os seus efeitos negativos sobre a saúde pública, com o aumento da propagação de doenças, como a cólera ou a malária, ou o impacto sobre condições de salubridade e acesso a recursos, como água e solo.


Publicado em 3 de Janeiro de 2022 às 11:56
Por Cofina Boost Content

A saúde e o bem-estar humano estão ligados de forma intrínseca ao equilíbrio do meio ambiental. Os ambientes naturais de boa qualidade respondem a necessidades básicas, em termos de ar puro e água potável, bem como terrenos férteis para a produção de alimentos, energia e matérias-primas. No reverso da moeda, o ambiente representa um veículo importante para a exposição à poluição atmosférica, ao ruído e produtos químicos perigosos.

Um problema a nível Mundial

A situação em que o que o Planeta se encontra atualmente, principalmente devido ao rápido avançar das alterações climáticas, já está a ter um grave impacto na saúde das populações. Sem nos apercebermos, os fenómenos meteorológicos extremos que ocorrem, sobretudo nas regiões mais vulneráveis, estão a facilitar a propagação de doenças infeciosas, como a malária e a cólera, tornando o clima de outras regiões semelhante ao da sua proveniência.

Os números não deixam dúvidas quanto a este impacto. A Organização Mundial da Saúde (OMS) refere que os fatores de stress ambiental são responsáveis por 12 a 18% do total de mortes nos 53 países da região europeia onde tem presença. Apesar dos efeitos serem sentidos de forma mundial, existem fortes variações regionais, com algumas partes do mundo a serem severamente mais afetadas do que outras, tanto a nível de saúde como de segurança alimentar. O Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) refere que um aquecimento global de 2°C colocaria mais de metade da população de África em risco de malnutrição. A OMS alertou que a saúde de milhões de pessoas poderá ser ameaçada pelo aumento da malária, de doenças transmitidas pela água e da malnutrição. Estes fatores terão também um impacto nas migrações humanas, com um aumento previsto do número de refugiados causado pelas alterações climáticas, não só pelo colapso de zonas agrícolas (secas extremas e inundações), como pelo aumento da frequência de eventos extremos com consequente destruição de infraestruturas e habitações, mas também colocando em risco os mais de 800 milhões de pessoas que vivem em zonas costeiras, ameaçadas pela subida do nível médio do mar.

A Médicos Sem Fronteiras, que lida com populações vulneráveis em cerca de 80 países, assume que no dia a dia da sua atividade é notório o surgimento de problemas e doenças que resultam do impacto das alterações climáticas. O representante da Médicos Sem Fronteiras em Portugal, João Antunes, assume que: “Estamos a ver nas nossas salas de espera as consequências do fenómeno das alterações climáticas em zonas que estão mais vulneráveis a estas situações como no Sul da Ásia, Pacífico, Médio Oriente, Sahel, África Austral e América Central”.

João Antunes refere que, em todas estas regiões “estamos a ver as consequências diretas destes fenómenos a vários níveis. Assim como, a nível indireto, já que em muitas regiões há uma diminuição das áreas cultiváveis. Com as alterações climáticas há mudanças nos padrões do comportamento das épocas das chuvas que se podem traduzir no aumento da desnutrição, das doenças infeciosas transmitidas pelos mosquitos ou pela má qualidade da água que origina cólera e diarreias. Tudo isto tem impacto direto na qualidade de vida das pessoas.”

De acordo com a OMS, até 2040 as mortes como consequência dos efeitos negativos das alterações climáticas vão aumentar para 250 mil por ano, a nível mundial. Além destes números, a OMS refere que os fenómenos meteorológicos extremos já figuram entre os principais impactos das alterações climáticas na saúde pública. Prevê-se um aumento da mortalidade causada pelas ondas de calor e pelas inundações, sobretudo na Europa, e a diferente distribuição das doenças transmitidas por vetores (como os mosquitos) também afetará a saúde pública.

Prevê-se que as ondas de calor, um dos fenómenos meteorológicos extremos com tendência a aumentar, vão causar, em 2050, 120 mil mortes adicionais por ano na União Europeia, representando um custo económico de 150 mil milhões de euros, se não forem tomadas novas medidas.

Em outubro de 2021, nas vésperas da realização da COP26, em Glasgow, a OMS relembrou que, atualmente, as alterações climáticas são “a maior ameaça à saúde da humanidade”, e apelou aos governos para saírem da pandemia de uma forma “saudável e verde”.

A poluição atmosférica constitui o maior risco ambiental para a saúde na Europa e está associada a doenças cardíacas, acidentes vasculares cerebrais (AVC), doenças pulmonares e cancro do pulmão. Calcula-se que a exposição à poluição atmosférica resulte em mais de 400 mil mortes prematuras na UE por ano.

Maria Neira, diretora do departamento da OMS para o Ambiente, Alterações Climáticas e Saúde, realçou que reduzir a poluição atmosférica para os níveis recomendados pela organização evitaria 80% dos cerca de sete milhões de mortes provocadas todos os anos pelos efeitos da poluição atmosférica.

“A saúde será a motivação para acelerar e para fazer mais para combater as alterações climáticas, que afetam os pilares da saúde: alimentação, água e qualidade do ar”, alertou Maria Neira.

No relatório que elaborou sobre esta temática, a OMS prevê que “mais de 90% dos seres humanos respiram níveis nocivos, para a saúde, de poluição atmosférica”.

E refere que uma mudança, por exemplo, no setor alimentar, no sentido de regimes alimentares mais “nutritivos e à base de vegetais” poderia reduzir as emissões de gases com efeito de estufa para a atmosfera e “evitar até 5,1 milhões de mortes relacionadas com a alimentação até 2050”.

A poluição sonora é um grave problema, tanto para o ambiente, como para a saúde humana, afetando a nossa qualidade de vida e saúde mental. A exposição ao ruído gerado, por exemplo, pelos meios de transporte e pela indústria pode causar irritabilidade, distúrbios do sono, aumento do risco de hipertensão e de doenças cardiovasculares, bem como deficiência cognitiva nas crianças.

Segundo a análise de Eulalia Peris, especialista em ruído ambiental da Agência Europeia do Ambiente (EEA), sobre o relatório “Environmental noise in Europe — 2020”, o ruído ambiental e, particularmente, o ruído do tráfego rodoviário, continua a ser um grave problema ambiental que afeta a saúde e o bem-estar de milhões de europeus, com cerca de 20% da população europeia, correspondente a mais de 100 milhões de pessoas, continuam a ser expostas a níveis de ruído prolongados e nocivos à saúde. Segundo dados deste relatório, estima-se que o ruído ambiental contribua para 48 mil novos casos de doença cardíaca isquémica por ano, bem como para 12 mil mortes prematuras. Estima ainda que 22 milhões de pessoas sofram de um elevado nível de incómodo crónico e que 6,5 milhões de pessoas sofram de perturbações do sono crónicas. Em resultado do ruído do tráfego aéreo, estima que 12 500 crianças em idade escolar tenham dificuldades de leitura.

Outro impacto associado às alterações climáticas, resulta da exposição a substâncias químicas perigosas. A população é exposta, diariamente, a uma vasta gama de produtos químicos através do ar e da água, da alimentação e de outros produtos de consumo. As propriedades de determinados produtos químicos perigosos provocam a sua persistência no ambiente e a sua bioacumulação nos organismos vivos, com bioampliação[1] sobre a restante cadeia alimentar, o que significa que haverá um desfasamento temporal considerável antes de as reduções da exposição se traduzir numa redução de efeitos. Esta situação suscita preocupações quanto aos efeitos na saúde da exposição a misturas de substâncias químicas ao longo da vida, sobretudo durante as fases mais vulneráveis da vida, como em crianças, grávidas e idosos.

Portugal ainda a marcar passo

O presidente da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, Francisco Ferreira, corrobora que as alterações climáticas afetam a saúde pública. “Em termos dos vários sistemas vulneráveis à crise climática podemos falar dos alimentos, da água e da saúde global. Em 2018, um relatório da revista Lancet sobre saúde identificou as alterações climáticas como a maior ameaça global de saúde do século XXI”, detalha Francisco Ferreira.

O presidente da ZERO refere que a saúde se liga a um conjunto de áreas fundamentais: aos fenómenos meteorológicos extremos, às doenças infeciosas, à água, à saúde mental, aos alergénios, ao stress associado ao calor, à poluição do ar, à alimentação.

O dirigente da ZERO destaca que as pessoas mais vulneráveis ao calor são as que têm menos recursos económicos, que se encontram em situação de sem abrigo, os mais idosos, as crianças, as pessoas que têm problemas cardíacos e respiratórios, bem como os trabalhadores que têm de exercer a sua atividade no exterior.

Quando se fala dos problemas alergénicos, a mesma fonte lembra que se estima que, com as alterações climáticas, se possa ter uma época de presença de pólenes muito maior que começa, por exemplo, nos Estados Unidos. Calcula-se que as plantas estão a produzir cerca de 21% a mais de pólenes e a época começa 20 dias antes em comparação com a década de 90.

Outra área tem a ver com as doenças infeciosas. “Sabemos que as alterações climáticas estão a causar problemas nos ecossistemas naturais e que estamos a promover um caminho mais rápido para muitas doenças infeciosas.”

O agravamento das alterações climáticas advém também da desflorestação. Francisco Ferreira diz que “na Amazónia, a desflorestação nos põe em contacto com potenciais doenças pandémicas, e o mesmo acontece nas florestas da Indonésia. Calcula-se que haja um aumento da malária com o declínio da cobertura da floresta.”

Ocorrem ainda as doenças tropicais transmitidas por vetores, que estão “com um movimento maior à custa das alterações climáticas. Aqui temos, por exemplo, o vírus do Nilo, a febre do vale do Rifte, a febre do dengue, o zika”, refere Francisco Ferreira.

A ligação entre alterações climáticas e a transmissão de doenças por vetores deve-se, por exemplo, nas doenças transmitidas pelos mosquitos, em que o vírus fica ativo mais rapidamente quando exposto a temperaturas mais elevadas. Além disso, os mosquitos em temperaturas mais elevadas picam mais vezes, propagando ainda mais estas doenças.

No caso das inundações, há que ter em conta que estas estão associadas a doenças como a cólera, a disenteria, a hepatite A e a febre tifoide. Francisco Ferreira salienta que, nos Estados Unidos, dois terços dos surtos de doenças relacionados com a água são precedidos de fenómenos meteorológicos extremos em termos de precipitação.

Quanto às medidas para minimizar este impacto, o presidente da ZERO refere que “temos de olhar para as populações mais vulneráveis e ver como se podem tornar mais resilientes. Melhorar a eficiência das habitações, informar no sentido de terem hábitos que contrariem essas situações de calor ou de frio.” No fundo, atuar no sentido da precaução e prevenção.

Sobre o panorama em Portugal, Francisco Ferreira sublinha que o impacto também já se faz sentir. A título de exemplo, recorda que, em 2003, cerca de 2300 pessoas “morreram prematuramente à custa da grande onda de calor que teve lugar em agosto. As ondas de calor têm sido mais extensas, frequentes e intensas. Este é o principal impacto em termos de saúde que temos”.

Sublinha também as consequências indiretas, como os incêndios de 2017, que tiveram impactos graves na saúde pública devido às partículas e aos gases emitidos, sendo que estes incêndios atingiram tal dimensão em grande parte motivado pelas alterações climáticas (temperaturas mais elevadas, maior instabilidade atmosférica e períodos de seca mais prolongados e severos).

O dirigente associativo destaca que Portugal tem uma Estratégia Nacional de Adaptação às Alterações Climáticas (ENAAC), sendo que já 26 municípios desenvolveram os primeiros Planos de Adaptação às Alterações Climáticas. Nesta fase, há “muitos municípios que estão a identificar as suas vulnerabilidades e as ações que devem ser tomadas. Cada caso é um caso. Uma coisa é Beja, onde se prevê que a temperatura venha a aumentar 3 a 7°C, e outra coisa é um local do litoral que possa ser abrangido por cheias significativas.”

Apesar de reconhecer que a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) tem vindo a desenvolver ações como a referida estratégia nacional, refere que “as medidas relativas a esta questão da prevenção da saúde ainda não passaram à prática, como seria desejável, em coordenação com a Direção-Geral da Saúde”.

Francisco Ferreira remata, sem dúvidas: “Em relação às várias componentes de adaptação às alterações climáticas, acho que estamos muito atrasados. Na questão da saúde já deveríamos ter no terreno políticas e medidas e, às vezes, acabamos por improvisar face a fenómenos meteorológicos extremos. Já devíamos ter planos de ação preparados e medidas de precaução e prevenção para lidar com estes impactos”.

É assim imperativa a preservação e melhoria da qualidade do ambiente, em todos os seus domínios, como o ar, a água, o solo, o ruído, a floresta e a biodiversidade, de forma a preservar a saúde humana, prevenir e controlar a propagação de doenças e, consequentemente, reduzir as mortes prematuras associadas.


[1] “Bioacumulação” é a absorção e armazenamento de elevadas concentrações de substâncias tóxicas, resultantes de atividades antrópicas, em determinados tecidos e órgãos dos seres vivos (ex. peixes contaminados por metais pesados); enquanto o conceito de “bioampliação” representa o impacto que a bioacumulação pode causar ao longo dos vários níveis tróficos de uma cadeia alimentar (ex. presença de metais pesados no organismo humano, devido à ingestão de peixe contaminado).